Havia, uma vez, em La Chassoule, duas mulheres que eram irmãs - uma chamada Catherine e a outra, a mais jovem, Marie. O seu único bem consistia num galo que deviam compartilhar. A isso se resumia a herança deixada pelos finados pais, e cada uma ficou com metade.
— Comerei o meu pedaço - disse Catherine. - Servirá para cozinhar um excelente estufado, acompanhado por um copo de leite e, no final, castanhas assadas.
— Eu não - replicou Marie. - Guardarei o meu pedaço; que ele faça o que quiser com a ajuda de Deus e do bondoso São Martinho.
O conto prossegue revelando-nos que essa mulher, possuidora de bom coração, recebeu uma excelente recompensa pela sua louvável ação. Na verdade, o seu pedaço de galo soube mostrar-se grato, como a seguir veremos.
Um dia, quando esgaravatava, no quintal, em busca de uma toupeira, o pedaço de galo encontrou uma bolsa cheia de luíses de ouro, que se apressou a entregar à dona. Pelo caminho, porém, cruzou-se com um malvado, que lha arrancou do bico e guardou na algibeira.
— Devolve-ma, ou temos luta - advertiu o pedaço de galo.
— Faz o que quiseres - retorquiu o ladrão. — Mas se pretendes lutar comigo, primeiro terás de me apanhar, pois sigo para casa, em Paris, e levo a bolsa.
—Pois bem, lutaremos em Paris.
O pedaço de galo foi comunicar a sua intenção à dona, que lhe perguntou:
— Para que queres ir, se não conseguirás nada?
— Quero a minha bolsa, e tê-la-ei - foi a resposta firme.
E partiu imediatamente. Pelo caminho, cruzou-se com o lobo, que lhe perguntou:
— Aonde vais, pedaço de galo?
— Aonde vou? Lutar em Paris. Acompanha-me, se queres.
— Que dizes, pobre diabo? Com as minhas quatro patas, chegaria muito antes que ti, pois andas ao pé-coxinho, por assim dizer.
— O primeiro a chegar espera o outro - desafiou o pedaço de galo.
O lobo tomou imediatamente a dianteira.
Um pouco mais tarde, o pedaço de galo cruzou-se com a raposa, a qual lhe fez a mesma pergunta e obteve idêntica resposta e convite.
— Não podes andar tão depressa como eu - lembrou a raposa. — Chegarei primeiro e esperarei por ti. — Isso! O primeiro a chegar espera o outro.
A curta distância dali, o pedaço de galo encontrou um rio, que lhe perguntou:
— Aonde vais tão depressa, pedaço de galo?
— Lutar em Paris. Se queres vir, segue-me.
— Vou muito mais depressa do que tu.
— Como queiras. O primeiro a chegar espera o outro.
Mas, infelizmente, mais adiante, deparou-se uma montanha ao rio, que não pôde continuar.
— Vem para cima de mim, que eu levo-te — indicou o pedaço de galo. E o rio assim fez.
Não tinham avançado muito, quando o pedaço de galo se cruzou com um enxame, cujas abelhas lhe perguntaram aonde ia.
— Lutar em Paris. Querem vir?
— Nem pensar! E muito longe. Desfalecíamos de cansaço pelo caminho.
— Então, ponham-se em cima de mim, que eu levo-as.
E as abelhas assim fizeram.
O infortunado pedaço de galo teve de continuar a caminhar durante muito tempo. Faltava pouco para chegarem a Paris, quando, numa sementeira à beira da estrada, avistou a raposa e o lobo deitados e a roncar profundamente. — Que fazem aqui, se iam chegar muito antes de mim? - perguntou-lhes, depois de os acordar com algumas bicadas.
— Caímos extenuados. Não podemos dar nem mais um passo.
— Então, ponham-se em cima de mim, que eu levo-os.
Por fim, decorrido todo o dia, quando o Sol estava prestes a desaparecer no horizonte, chegaram a Paris. O pedaço de galo estava tão esgotado, que a sua única pata parecia dominada por um formigueiro. Dirigiu-se a casa do seu litigante, que lhe disse: — Hoje já é tarde para lutarmos. Esperaremos que amanheça. Entretanto, jantarás connosco. Beberemos uma garrafa de vinho e oferecer-te-ei uma cama para passares a noite descansado. — Muito bem - aprovou o pedaço de galo. - Dois bons litigantes podem brindar juntos.
Quando anoiteceu, o homem e a sua mulher, que queriam libertar-se do infortunado matando-o, mandaram-no dormir para o redil onde se encontravam as ovelhas, para que o esmagassem durante a noite. Com efeito, quando a porta foi fechada atrás dele, os animais começaram a investir. — Lobo - ordenou o pedaço de galo. - Sai daí e come-as.
O lobo procedeu como lhe era indicado.
De manhã, o dono da casa surpreendeu-se ao descobrir todas as ovelhas mortas e que o único ser vivo que restava no redil era o pedaço de galo. Correu a informar a esposa, que replicou com malvadez: — Não te preocupes. Logo à noite, mandamo-lo dormir com as aves. As galinhas, perus e gansos hão de matá-lo a fogo lento, até que fique bem cozido.
Ele tratou de seguir o conselho. Quando o introduziram pelo teto da capoeira, todas as aves se lançaram sobre o pedaço de galo, com bicadas implacáveis.
Irritado com a indesejável receção, ele indicou à raposa:
— Sai daí e mata todos estes imundos animais.
Dito e feito. Na manhã seguinte, quando a mulher se dirigiu ao galinheiro, ainda ficou mais surpreendida do que o marido na véspera. Rubra de cólera, procurou-o e determinou: — Esta noite, fazemo-lo dormir no forno, que aqueceremos previamente. Garanto-te que amanhã o encontraremos assado.
Durante o jantar, o homem anunciou ao pedaço de galo:
— Também não podemos lutar, hoje. Estou muito triste por ter perdido os meus animais.
— Como queiras. Não tenho pressa. Posso esperar.
À noite, após o jantar, os donos da casa disseram ao hóspede: — Decerto passaste frio, nas noites anteriores. Hoje, vais dormir no forno, onde estarás mais quente.
— Como queiram - respondeu ele. - Não sou exigente. Sinto-me bem em qualquer parte.
Quando se encontrou no forno e notou que a pata começava a chamuscar-se, ordenou ao rio:
— Sai daí e refresca-me a cama, que está demasiado quente.
O rio encheu o forno de água, que se comunicou igualmente aos fogareiros, tina, barril de lixívia, caldeira e grande parte da casa. Arroios caudalosos precipitaram-se para o exterior, e dir-se-ia que estivera a chover durante uma semana. — Que vamos fazer com este patife? - perguntou a mulher, que tinha os pés imersos em água até meio das pernas.
— Temos de o pôr a dormir connosco, aos pés da cama - decidiu o marido. - Reduzimo-lo a papas com pontapés.
— Boa ideia. Tens alma de anjo. Assim, não nos poderá escapar.
Quando se encontraram os três na cama, o homem e a mulher começaram a mover os pés e a atingir o infortunado pedaço de galo. A princípio, este pensou que apenas o queriam desfrutar, fazendo-lhe cócegas. Mas quando principiou a sentir-se mal, ordenou às abelhas: — Saiam daí e piquem-nos.
Só queria que vissem a prontidão com que o casal se levantou e começou a percorrer a casa e depois a rua, em camisa de dormir!
Por fim, as abelhas deixaram marido e mulher em paz. Ela, totalmente sufocada, bradou:
— Aquilo não é um galo, mas um papão! O diabo! O Anticristo! Entrega-lhe a bolsa para que nos deixe em paz. De contrário, ainda acaba por nos matar!
Por conseguinte, o dono da casa apressou-se a seguir o conselho. Restituiu a bolsa ao pedaço de galo, que se pôs de novo a caminho em direção a casa, a fim de entregar o dinheiro à dona. Com ele, compraram uma herdade excelente e, daí em diante, viveram felizes a trabalhar as terras. O pedaço de galo passou o resto da vida sem problemas nem a ter de se preocupar com o dia de amanhã, pois a dona, agradecida, nunca permitiu que lhe faltasse trigo, milho ou cânhamo.
DIEDERICHS, Ulf,Palácio dos Contos,vol.I, Círculo de Leitores, Lisboa,1999
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